Pés descalços
por Oasys Cultural
31 DE MARÇO DE 2020
O sol vinha descalço é o livro de estreia de Eduardo Rosal e foi vencedor do Prêmio Maraã de Poesia 2015. Diz Priscila Wandalsen, Mestre e doutoranda em Literatura Brasileira (UFRJ) sobre a obra: “Ao ouvir os sons que emanam das páginas, as imagens desconcertantes, sensoriais, os diálogos e rompimentos com a tradição, percebe-se que Eduardo é muito consciente de sua ‘luta com as palavras’. Essa luta vã, como afirma Drummond, fica clara na procura de uma metáfora precisa no verso ‘O som é um silêncio/ entre Deus e o Diabo’; na disposição das palavras nas páginas, devido a um sensível diálogo com Ferreira Gullar; no caos existencial do poema ‘Humano’; nas perguntas amalgamadas de ‘Fumaça’; nas gostosas aliterações que permeiam todo o livro.”
Leiam a entrevista com o poeta.
Você é mestre e doutor em Teoria Literária. Isso ajuda de algum modo na escrita da sua poesia?
R: A experiência acadêmica contribui, sem dúvida, para a minha produção poética, sobretudo pelo aprofundamento e o alargamento da leitura. O escritor tem de ser um grande leitor. Busquei sempre, em meu percurso na universidade, um estudo do diálogo entre as mais variadas formas de arte. Tanto que escrevi uma tese de doutorado que aborda, não só literatura, mas também artes plásticas, música, história, mística e até física, por exemplo. A literatura é a potência da conversa entre os mais diversos saberes. E, para mim, o ponto de convergência desses saberes é a noção de imagem. Escrevo para aprender a ver e criar imagens.
O sol vinha descalço tem o rigor da forma, mas fala de temas bem próximos do leitor – é um livro fácil de ler. Isso foi intencional?
R: Meu livro não é um mero apanhado de poemas; é um livro pensado. E, nesse sentido, um livro que busca, sim, certo rigor de escrita; é um livro que reescrevi ‒ apagando mais do que acrescentando ‒ durante muitos anos, justamente para encontrar essa forma. Ao mesmo tempo, quis um livro que tocasse em temas comuns do nosso cotidiano, e que transmitisse o meu olhar para esses elementos corriqueiros que, muitas vezes, passam despercebidos. Tentei aliar essa temática a um cuidadoso trabalho formal, mas sem deixar que este sobressaísse. Acredito que por esse motivo é que tive um retorno positivo tanto de grandes críticos como Eduardo Portella, Alfredo Monte e Marcos Pasche, quanto de leitores jovens e não vinculados à cena acadêmica.
Como se deu a sua formação em poeta? Quais autores leu e quais lhe influenciaram?
R: Sempre fui um leitor apaixonado, desde muito novo. Mas como não tinha livros em casa, foi através da MPB e dos livros didáticos (ainda no ensino fundamental) que tive meus primeiros contatos com o texto literário. Comecei lendo os parnasianos e os românticos. Depois fui buscando outros poetas. A descoberta dos sebos foi um boom na minha vida. Quando cheguei em Vinicius, fiquei viciado, mas àquela altura não percebi a modernidade dele, até que topei com Ferreira Gullar. Foi o segundo boom. Daí vieram Drummond, Adélia, Cabral, Murilo, Bandeira e Pessoa. Depois que ingressei na faculdade de Letras, a lista cresceu exponencialmente. Poderia citar alguns: Dante, Montale, Sena, Eugénio de Andrade, Vallejo, Hölderlin, Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, Apollinaire, Char, Lorca, Maiakóvski, Kaváfis, Waly Salomão, Hilda Hilst etc. Isso para ficar só nos consagrados e não estender muito a lista.
Você acaba de realizar a preparação de texto da poesia completa de João Cabral de Melo Neto para a Editora Alfaguara. O que significa, na prática, preparar o texto de um autor considerado ‘pronto’ e já consagrado?
R: Já fiz preparação e copidesque de muitos livros, inclusive de importantes autores contemporâneos como Ricardo Lísias, Carrascoza, Adriana Lisboa e Verissimo. Mas preparar o texto de um autor falecido e consagrado, como é o caso de João Cabral, me apresentou um desafio diferente, porque implicava em um rigoroso cuidado com o irretocável estabelecimento de texto feito pelo Antonio Carlos Secchin (quem hoje responde editorialmente pela obra de Cabral). Na prática, meu trabalho foi, então, padronizar todo o arquivo e, sobretudo, cotejar ‒ palavra por palavra ‒ cada um dos poemas, a fim de garantir à edição uma perfeita fidedignidade às versões corretas dos poemas e à estruturação dos livros, pois as edições anteriores da obra completa de Cabral, além de não serem completas, incorreram em inúmeros equívocos, tanto editoriais quanto textuais. Portanto, se em outras preparações eu tive mais liberdade para sugerir e interferir no texto (sempre com aprovação do autor, é claro), no caso de João Cabral o que precisei fazer foi garantir a eliminação dos antigos desvios editoriais e textuais para, enfim, atender ao milimétrico trabalho que, em vida, o próprio Cabral sempre teve com seus livros. Afinal, não custa lembrar que alterar/deslocar/suprimir uma vírgula, um espaço, uma letra etc. faz todo o poema desandar, sobretudo quando se trata do poeta de maior apuro formal em nossa literatura.
“O sol vinha descalço”, quando ainda era inédito, foi vencedor do Prêmio Maraã de Poesia. Isso ajudou na publicação da obra? É importante, para um escritor, procurar e inscrever seus originais em prêmios? Por quê?
R: O Prêmio Maraã de Poesia, além da premiação em dinheiro, garante a publicação da obra pela editora Reformatório. Aliás, a última edição do Prêmio trouxe uma novidade: a publicação de duas obras, em parceria com a editora Patuá. Não tenho dúvidas de que, se não fosse o Prêmio, teria sido bem difícil publicar por uma editora com a qualidade da Reformatório, sem ter que fazer um pesado investimento financeiro. É óbvio que há alternativas, mas é inegável que um prêmio abra portas decisivas, além de estreitar o caminho até o leitor, já que a premiação acaba sugerindo ao leitor certa qualidade da obra, devido ao fato de ela já ter passado por um respeitado crivo crítico.
Entrevista com o escritor Eduardo Rosal
por Fernando Andrade
Eduardo Rosal nasceu no Rio de Janeiro. É escritor, ensaísta e doutorando em teoria literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente vive em Nice, na França, onde está desenvolvendo parte da pesquisa de sua tese de doutorado, na Université Nice Sophia Antipolis. Em 2016, venceu o Prêmio Maraã de Poesia, que resultou na publicação de O sol vinha descalço, sua estreia na literatura, pela editora Reformatório. Fizemos quatro perguntas ao escritor. Confira abaixo.
1 – Sua poética tem uma contenção de linguagem, e há no dizer; no sentido a explorar uma infinidade de imagens que vão se revelando no decorrer da leitura? Como é este belo exercício estético?
Eu creio na concisão da palavra. Reescrevo um mesmo poema inúmeras vezes, incansavelmente ― uma espécie de soma de subtrair, em que enxugo a palavra para alargar o dizer. Por conta disso, O sol vinha descalço foi um longo parto. Não à toa é com essa imagem que termino o livro. Gosto dessa matemática poética. Além disso, me encanta a ideia de que há muitos livros sob um livro, de que há muitas palavras soterradas sob outras. Acredito que uma vez escrita uma palavra num verso, por mais que a retiremos ou troquemos por outra, a memória dela continua a rondar o poema como um fantasma. Por mais que eu corte muito nos poemas que escrevo, a sensação é de que o poema está sempre se expandindo, se alargando. Caso sinta o contrário, é porque o poema provavelmente não tem vida. Ao menos no meu O sol há muitos livros subterrâneos: poemas inteiros que chafurdaram na emergência de um novo; outros que nunca chegarão a ser lidos (e são muitos, muitíssimos), mas que para mim compõem as entrelinhas. É como numa pintura, em que o pintor sobrepõe camadas e camadas de tinta que escondem as camadas debaixo, mas que justamente por estarem por baixo são fundamentais para a composição da cor final de um quadro; em que cada risco feito sobre um outro não apaga o anterior, mas compõe com ele uma imagem impossível. Assim gosto de pensar a escrita: a construção sensível de uma imagem impossível. O que mais me importa como escritor é esse caminho do invisível ao visível, do não dito ao dito… e nesse percurso encontrar a escrita do que é humano, e não só o humano culto, classe média, conhecedor de livros e museus, mas o humano que, assim como os poemas que nunca serão lidos, está aí, subterrâneo, compondo a história da humanidade.
2 – Este trabalho de metaforizar os elementos da natureza é bem interessante no seu livro. Como você elabora estes signos (bonitas imagens) para sua poesia?
De fato, a natureza é um elemento que perpassa todo o livro, seja ela humana, animal, vegetal etc. Uma das partes do livro (“Centauro”), por exemplo, é composta por cinco poemas que convergem a figura dos animais com a dos seres humanos, como se pudéssemos reconhecer um no outro. Em outras partes, a natureza é também crucial para a elaboração das imagens. Recordo agora um episódio da minha infância em que, folheando ao acaso uma enciclopédia, fiquei muito encantado com as imagens do corpo humano, os detalhes dos elementos da natureza, a riqueza misteriosa das pequenas coisas da existência. Tanto que um pouco mais tarde, durante o ensino médio, cheguei a fazer um rápido estágio em Palinologia (área da botânica que estuda os polens) no Museu Nacional. Gostava da ideia de uma observação microscópica das coisas, uma busca arqueológica de compreensão do mundo, das pessoas e das coisas. Além disso, tive a oportunidade de viajar por regiões distintas do Brasil, através das quais pude constatar a imensidão da nossa natureza. Morei, por exemplo, dois anos em Tabatinga, interior do Amazonas. Esse lugar me formou emocionalmente. Depois das aulas, eu ia com meus colegas tomar banho de açude. Eles se embrenhavam pelas matas, e eu ia atrás, com um misto de medo, encanto e respeito pela natureza, impressionadíssimo com o fato de eles conseguirem se localizar dentro da mata através da disposição e da altura das árvores. O que para mim era um labirinto verde, com possíveis minotauros à espreita, para eles era um ambiente familiar, um quintal de casa. O ritmo, as cores, as frutas, os rios, o contato com povos indígenas, colombianos, peruanos, tudo isso ressoa em minha imaginação.
3 – Há certas imagens polarizadas como Escuro/Luz – Sol/Chuva nos poemas. São situações onde os tempos e ações parecem que se semantizam entre si pelos avessos. Qual resultado disso dentro de sua forma de trabalho poético?
A literatura (ou a arte, de modo geral) é um campo aberto ao contraditório, aos avessos. A tessitura poética diz no verso, no anverso, por todos os ângulos. Não acredito absolutamente em nenhum maniqueísmo. Portanto, quando escrevo não posso ignorar o fato de em mim coexistirem emoções opostas que se tensionam e constituem uma maneira ampla e complexa de encarar o mundo. As “imagens polarizadas” são uma tentativa de captar a dinâmica natureza humana. Escrever, para mim, é um exercício do olhar. Um olhar que une memória e imaginação; um olhar de longe e de perto. Pelo menos é assim que trabalho meus poemas, como um minucioso exercício de observação, de tentativa de expressão das múltiplas verdades das imagens. E busco criar imagens concretas, a partir do abstrato processo de tensão dos opostos. Essa é a complexidade da criação: concretizar o etéreo, o que se esfumaça; dar forma ao fugidio. Sinto que um poema meu é digno de ser publicado quando ele é capaz de me dizer com imagens concretas uma emoção, então talvez ele seja capaz de tocar o leitor. Não acredito que escrever a palavra “tristeza” dê a concreta dimensão do que se sente quando se está triste, mas quando leio num verso de Neruda “um trem imóvel na chuva”, vejo concretamente a tristeza, e então sinto sua verdade poética. Os caminhos da concretude são sempre inéditos, ainda que óbvios em seus avessos.
4 – Você tem algum outro projeto em prática?
Não consigo conceber a ideia de um dia não ter algum projeto em prática, ao menos enquanto eu tiver memória e imaginação. É claro que às vezes passo por aqueles momentos de esvaziamento, de pouca escritura de fato. Mas o processo da escrita não acontece apenas quando coloco as palavras no papel. Como disse acima, escrever é um exercício incessante de observação do mundo. Nesse sentido, não paro nunca de escrever. Tudo o que vejo ou que imagino, de uma forma ou de outra, ecoa em meus textos. Um poema, por exemplo, começa muito antes de eu escrever a primeira palavra. Há um momento de gestação anterior ao ato da escrita, como o “convive com teus poemas, antes de escrevê-los”, do Drummond.
Depois de O sol vinha descalço, tenho me dedicado mais à prosa. Além da tese de doutorado que preparo, venho rascunhando um romance do qual pouco sei ainda. Não sei trabalhar com o conhecido. Tudo o que não sei é o que me fascina. E por desconhecer o que escrevo, nunca posso fazer previsões. Tenho também mais encaminhado um livrinho infantojuvenil, mas que ainda precisa de muita labuta e que não deve ser publicado tão cedo. Há sempre muito a amadurecer. A publicação não é pra mim um objetivo, uma consequência natural da escritura. Escrevo para conhecer a mim e aos outros; para conhecer o mundo e minha relação com ele. Não escrevo para publicar; escrevo para aprender (um clichê, mas os clichês também podem ser verdadeiros), para encontrar a ilha desconhecida como o conto do Saramago. Mas, é claro, quero ser lido. Mais ainda, minha ambição é ser relido. Com O sol vinha descalço senti que era o momento de publicá-lo, mas estou certo de que se não fosse o Prêmio Maraã de Poesia (agradeço aos meus editores Marcelo Nocelli e Rennan Martens), meu livro ainda estaria na gaveta.
"Ler com a alma". Entrevista com o
crítico literário Alfredo Bosi
por Eduardo Rosal, Heleine Domingues, Luiz Guilherme Barbosa, Marcos Pasche,
Mayara Guimarães, Priscila Castro, Roberto Lota e Wellington Silva.
Há muito Alfredo Bosi é reconhecido como um dos mais importantes críticos literários brasileiros. Afeito à linha de leitura pautada pela conjunção de formalismo literário e implicação histórica, o autor de Dialética da colonização é dono de uma obra que resolve com felicidade os impasses instituídos por correntes analíticas refratárias à pluralidade. Nesta entrevista, concedida a estudantes da pós-graduação da UFRJ (Eduardo Rosal, Heleine Domingues, Luiz Guilherme Barbosa, Marcos Pasche, Mayara Guimarães, Priscila Castro, Roberto Lota e Wellington Silva), no Centro de Estudos Avançados da USP, do qual é coordenador, Alfredo Bosi fala detidamente de seu mais recente livro — Ideologia e contraideologia —, recapitula seu percurso intelectual e destaca a importância do Padre Antônio Vieira para as letras do Brasil.
• Em Ideologia e contraideologia, a crítica literária praticamente não aparece. A escrita de um livro dedicado à análise de idéias sociológicas e filosóficas é fruto de um projeto antigo, talvez possibilitada no momento em que se deu sua aposentadoria, ou fruto de um caminho novo que o senhor pretendeu explorar recentemente?
Essa pergunta me interessa de perto porque me ajuda a fazer uma auto-análise até de um possível projeto intelectual. Acredito que essa preocupação em definir melhor certas idéias, certos valores culturais, venha de longe. Pelo menos, eu poderia datar da concepção de Dialética da colonização. Quando escreviDialética da colonização, no final dos anos 1980, publicado em 1992, já minha preocupação era construir essa ponte entre o universo literário — que é um universo de imaginação, que se projeta evidentemente à subjetividade dos autores — e algo público, uma atmosfera cultural, social, pública.
Fui educado, bem no princípio da minha formação, na leitura das obras de Benedetto Croce, que era realmente o centro dos estudos literários da Itália. Mas fui educado já na Universidade de São Paulo, quando estudioso e depois professor de literatura italiana, em uma estética que insistia na separação, na divisão. Isto é, deixava bem claro que uma coisa era o conhecimento do mundo por meio de idéias e valores — conhecimento de que a filosofia é o centro, mas que depois foi ampliado, na modernidade, mediante as ciências humanas, sociologia, antropologia, ciências políticas, psicologia —, e outra o conhecimento por intuição.
O conhecimento por idéias tem uma relação com o real de fidelidade, em que sensibilidade e imaginação devem conter-se para que o mundo da relação entre idéia e realidade apareça na sua nudez. Ao passo que o conhecimento por imagens, o conhecimento intuitivo, não precisa ter uma correspondência direta com o mundo empírico, histórico. Isto é, quem escreve um romance, mesmo que queira fazer um romance histórico (como acontecia muito no século 19 e continuou acontecendo em grande parte do século 20), mesmo quando deseje realmente ser fiel à historicidade, é claro que não precisa comprovar documentalmente a veracidade dos fatos. Então há, mesmo no romance histórico, uma imbricação do documento com o imaginário. Essa concepção de Croce parece muito radical, como quem diz: “Ciência é ciência, filosofia é filosofia, sociologia é sociologia, arte é arte. Arte é imagem e sentimento. As ciências humanas têm uma relação direta com a realidade, ou procuram ter, e têm obrigação de dar ao seu leitor a veracidade de suas conclusões”.
Essa foi minha primeira educação estética, pela qual o mundo da imaginação e do sentimento formava um espaço próprio que deveria ser estudado na sua especificidade. Mas as diferenças entre os sujeitos literários, os autores, é que realmente marcam a história da literatura, mais do que os grandes blocos, como o renascimento e o barroco. É preciso que se preocupe realmente com o diferencial individual. Croce chegou a dizer uma coisa que escandalizou os historicistas da época, hoje menos: que a melhor história da literatura seria por autores. Então você pensava: Dante e sua época, Petrarca e sua época, quer dizer, o sujeito em primeiro lugar, enquanto o historicista faz o contrário, não é? Ele primeiro estuda as grandes características dos movimentos e depois situa os autores. Bom, essa posição radical do Croce me ajudou bastante, pois me deu uma base teórica para dar à literatura o que é da literatura, dar à poesia o que é da poesia, mas, ao mesmo tempo, essa posição ficava um pouco marginal em relação à sociologia da literatura, as relações entre antropologia e literatura, entre cultura e literatura. Tudo isso, como se dizia, era interessante, só que não interessava. As pessoas achavam que deveriam fazer a relação, principalmente quem tinha uma formação marxista ou hegeliana, as duas posições sociológicas mais fortes.
Havia um mal-estar: ou se estabelecia uma autonomia da escrita de tudo que ficava em torno, e se focava inteiramente na intuição, na criação, que é a posição croceana; ou então o contrário, colocava-se luz no período todo e tudo era iluminado, e os autores recebiam luz deste universo de valores e idéias, que seria a posição da sociologia da literatura, do marxismo; em geral, das posições culturalistas. O importante é saber o que há de comum em vários autores para flagrar o espírito do tempo, da época. Essa é uma expressão profundamente historicista que vem de Dilthey, filósofo do final do século 19, criador da idéia de que a gente precisa estudar os estilos históricos, pois, por mais que nós sejamos individualizados, personalizados, quem for ver de longe, dirá: “Ele quis ser muito original, mas veja quantos escritores pensaram igual. Então havia uma coisa que os transcendia — os estilos de época”.
• Como o senhor reagiu diante dessas duas possibilidades de história da literatura?
Isso que estou colocando passou a ser um problema para mim, não tinha uma solução. As soluções opostas eram drásticas: ou a autonomia do texto literário, ou o que na Itália se falava “heteronomia”, quer dizer, não há nada que seja específico, tudo tem relação com o outro, que é um outro que o transcende. A primeira posição acabou sendo chamada de idealista, porque ela evidentemente dava o maior crédito possível à originalidade individual. E a segunda posição era realista, ou, no caso, marxista materialista.
Quando eu estudei, essa posição marxista não tinha ainda hegemonia nenhuma, como depois veio a ter em certos momentos da história cultural, sobretudo nos anos 1970. Nós não nos preocupávamos em fazer uma relação fixa com a ideologia da época, nos preocupávamos em entender o autor na sua especificidade. Mas o tempo vai mudando, os acontecimentos históricos vão nos pressionando. Eu escrevi História concisa da literatura brasileira sob o fogo da ditadura militar, portanto, não era possível que me subtraísse à importância das ideologias dominantes — às quais, porém, já naquela época eu contrapunha algo que eu não chamava de contraideologia, mas que sempre procurava mostrar uma intuição que eu tinha, que não era ainda perfeitamente formulada. A intuição era que mesmo nesses períodos tão fechados, como realismo e naturalismo, ou então, voltando atrás, ao barroco, a gente encontraria diferenças internas, que seriam quase tensões internas. Eu sentia que isso era importante, mas não teorizava a respeito. O período é este, mas você encontra barroco e antibarroco dentro do mesmo período; o período é romantismo, mas você encontra quatro ou cinco romantismos na literatura brasileira, e isso é bastante evidente: a primeira, segunda e terceira gerações, muito próximas, que vão dos anos 1840 aos 1870; em 30 anos você tem literaturas conservadoras como Gonçalves e Magalhães até Castro Alves, e tudo é romantismo. Mas então o que é esse romantismo que tem diferenças tão profundas?
Eu sentia que essas teorias de quem faz história literária pagam muito tributo aos estilos e períodos. Evidentemente, ainda mais por vias didáticas, não se pode deixar de pensar nos grandes períodos, como eu pensei à época. Só que à medida que eu escrevia o livro, verificava que era insuficiente só demarcar as características — era muito escolar, naquele sentido menor, “romantismo é a, b, c, d, e”, como faziam os cursinhos antes e ainda fazem; virava uma coisa mecânica. E é assim mesmo, pois há quase que uma imposição de que é preciso entender os grandes períodos. É claro que, por trás disso, num nível alto, havia o pensamento de Dilthey, de que Carpeaux, no Brasil, foi o grande divulgador na História da literatura ocidental. É uma história que acredita profundamente na unidade dos grandes períodos, mas como Carpeaux era um espírito dialético, que tinha lido muito Hegel, e depois Marx, ele foi dialetizando dentro de cada grande período. Foi meu mestre, meu grande mestre, a quem dediquei esse meu livro em 1970, uma época em que ele já estava se afastando da crítica literária e entrando numa militância antiditadura, uma militância que acabava escrevendo em jornais dos estudantes de esquerda. Grande homem, mas cuja História da literatura ocidental foi para mim o paradigma.