Eduardo Rosal
Quarentena, pão e palavra
[30.03.20]

A quarentena me trouxe de volta a minha infância e, ao mesmo tempo, escancarou o meu presente. Da infância ela reacendeu, principalmente, certas cenas do subúrbio carioca em que nasci e cresci: o contato com o quintal e o sofá, que eu havia trocado exclusivamente pelo escritório da fase adulta; o olhar mais atento para as coisas pequenas, como a observação detalhada dos insetos e dos sons; a receita do bolinho de chuva e o horário certo para o café com bolo de fubá ou cuscuz etc.
Mas o que mais me convocou à minha infância foi o retorno do padeiro de bicicleta e sua buzina. Não sei se ele já passava antes da pandemia ‒ e eu é que não atentava a essa passagem ‒, ou se começou justamente agora que precisamos de atendimento delivery (e uso o termo em inglês porque esse conforto é para poucos). O fato é que a buzina do padeiro me trouxe uma avalanche de memórias da infância. Memórias quentes como o pão que alimenta a civilização há seis mil anos, mastigado por todos os povos ‒ um rascunho da diversidade. O pão é simbólico e diz muito sobre seu povo. Nós brasileiros, por exemplo, batizamos de francês um pão que não se come na França e que custa mais caro aqui do que custaria lá. Por falar nisso, sou do tempo em que com dez centavos se levava um pão para casa. Se encararmos a metáfora do pão, como dividi-lo e multiplicá-lo? Para o povo, o tempo da quarentena social é sempre.
Foi essa quarentena social que a buzina do padeiro escancarou no meu presente. Uma buzina pode ser mais potente que um jornal. Hoje minha mesa é muito mais variada do que a da infância. Mas a fome é a mesma: a fome das palavras e a necessidade (mais: a responsabilidade) de reparti-las e distribuí-las. Resta-me a questão da linguagem: como transpor as barreiras da metáfora lida e transformar a palavra no pão da justiça social?
Eduardo Rosal