Eduardo Rosal
UM EDIFÍCIO-AVÔ CHAMADO JOCEMAR

A vida é mesmo um somatório de mistérios e coincidências. E é por uma coincidência que começo este texto. Os leitores da crônica anterior a esta já estão em posse de um fato: eu e meu avô nascemos na mesma data, 23 de dezembro, e dividimos muitas semelhanças. Eu sei que não é tão incomum que familiares tenham na certidão de nascimento a mesma data, assim como também não é incomum compartilharem semelhanças físicas e de personalidade. Mas o caso do meu avô coloca temperos diferentes em minha história, pois o que permeia tudo isso é justamente a criação literária. E não preciso dizer o quanto essa questão importa para um escritor.
Sei apenas por flashes de memórias alheias quem foi Jocemar (meu avô). E cresci ouvindo da minha família que meu jeito e meus gostos são muito parecidos com os que ele tinha. Se o que faço lembra meu avô, é tudo um gesto involuntário, natural, afinal sequer o conheci para que pudesse imitá-lo. O fato é que quanto mais eu crescia, mais essas semelhanças se revelavam e espantavam, não a mim, que era a peça viva da comparação, mas às pessoas que o conheceram. Não foram poucas as vezes que ouvi frases do tipo: “Seu avô também fazia isso”, “Impressionante, seu avô também gostava disso” etc.
Eu poderia contar algumas coisas sobre ele para exemplificar esses espantos. Eu poderia contar, por exemplo, que ele desenvolveu a capacidade de ser ambidestro e que tinha boas habilidades motoras, que foi reformado ainda bastante novo na carreira militar por conta da tuberculose, que mesmo com a tuberculose não largou nunca os cigarros e sua companheira, a cerveja, nem o companheiro inseparável da cerveja, o bar. Poderia contar que no bar ele ficava sentado lendo o dia inteiro (sem jamais ficar bêbado) e que, também no bar, vez ou outra ele me levava ao colo e apostava uma caixa de cerveja com quem ousasse conseguir me fazer rir. Eu, um bebê antissocial, nunca sorria para desconhecidos. Segundo consta, minha seriedade precoce fez meu avô ganhar todas as apostas.
Poderia contar que ele, ainda no bar, lia de tudo: literatura, livro didático, bula de remédio e o que mais surgisse com palavras. Era um avô enciclopédico que, além do mais, consertava eletrodomésticos e cantava seresta com voz maviosa. Isso explica porque eu, uma espécie de Benjamin Button, quando criança gostava de cantar Nelson Gonçalves, Altemar Dutra e afins. Boemias à parte, meu avô não só cantava, como também compunha muitas músicas que, segundo consta, chegavam a tocar no rádio. Mas ele nunca assinava o que escrevia, de modo que hoje não temos registro de nada. Assim como não temos o registro de sua cerimônia de posse na Academia Brasileira de Trova (se é que assim se chamava), para qual ele fora eleito membro por unanimidade. Desse dia, a única coisa que restou foi o vestido que minha avó usou na tal cerimônia e guardou até o fim da vida, mostrando-me muitas vezes, orgulhosa do meu avô e aproveitando para apontar nossas parecenças poético-comportamentais.
Dos poemas e das músicas, hoje não temos mais nada. Ou quase nada, não fosse o acaso ter me levado um dia, ainda adolescente, a um sebo no subúrbio carioca. Passeando o dedo na lombada dos livros empilhados e empoeirados pelas prateleiras, topei com um livro de trovas de Onildo de Campos, e num estalo da tal memória alheia, lembrei que Onildo era um dos melhores amigos do meu avô. Abri o livro. Lá estava uma trova do meu avô, publicada a pedido e em homenagem ao amigo (só assim mesmo). É tudo o que nos resta do poeta que meu avô foi: uma trova. Uma única trova encontrada pela sorte que acompanha os arqueólogos.
Mas vou poupar o(a) leitor(a) de tantas histórias tatuadas só em mim com a agulha e a tinta da extrema pessoalidade. E vou poupá-lo(a) também das comparações com as minhas características, porque isso implicaria em ter que escrever sobre mim e, quando não, sobre aquilo que ‒ com uma generosidade de mãe ‒ se poderia chamar de “minhas qualidades”. Não cairia bem, convenhamos.
O que basta dizer é que de tal modo eram as semelhanças que encontravam entre mim e meu avô que, com o passar do tempo, isso começou a pesar em mim. Principalmente quando passei a entender que eu também não poderia fugir à sina de procurar palavras. Eu queria, sim, ser como meu avô, a quem resumiam como uma pessoa pacífica, afetuosa e interdisciplinarmente inteligente. Quem não quereria? Portanto, eu queria, sim, ser como ele, mas resolvi que, ao contrário, iria publicar e assinar meu nome em tudo que criasse. E assim tem sido, sem pressa.
O que basta dizer é que, desde jovem, em todos os prêmios literários que ganhei, usei como pseudônimo o nome Jocemar, como um amuleto, uma homenagem ao escritor que ele, não sendo, foi.
O que basta dizer é que escrevo para dar continuidade à obra que ele “não” escreveu. É como uma “arqueologia inversa”, para usar um termo de Beatriz Sarlo. Escrevo para trabalhar sobre as ruínas de um edifício nunca construído. Meu edifício-avô, agora projetado em palavras.
Eduardo Rosal